A interiorização como elemento catártico
Analisar toda uma década de uma categoria (nesse casso,
Melhor Atriz) requer a compreensão de inúmeros fatores que levaram as atrizes a
sagrarem-se vencedoras. Precisamos compreender o que sucedeu em cada ano no
qual cada atriz foi vencedora e, ainda, precisamos compreender diacronicamente
todo o histórico da década. Quanto à diacronia, precisa-se estudar uma
recorrência naquela década: 2000 se caracterizou pelos votantes mais
tendenciosos às interpretações de personagens verídicas – não é à toa que das
10 vencedoras 7 conquistaram seus prêmios interpretando pessoas reais. Se
compararmos essa década com as décadas anteriores, veremos que o foco das
vitórias é outro: na categoria feminina principal de atuação, a década de 70
ficou marcada pela quantidade de personagens fictícias advindas de romances
literários; já a década de 80, se dividiu entre as personagens fictícias da
literatura e das peças de teatro; a década de 90, por sua vez, ficou dividida
entre as personagens fictícias advindas da literatura e as fictícias criadas
diretamente para os filmes. A década de 2000, porém, é, sobretudo, lembrada
pelos registros de pessoas verídicas em eventos intercambiáveis entre realidade
e ficção (como é o caso, por exemplo, de Nicole Kidman vivendo Virginia Woolf
em “As Horas”, de 2002).
Sintetizo as vitórias dividindo as atrizes em grupos de
modo a expressar melhor meu entendimento acerca dos prêmios que lhes foram
concedidos. Acredito que o agrupamento mais cabível seja a separação em três
grandes grupos, havendo algumas atrizes que podem estar em mais de um. São
eles: 1) atrizes que venceram não apenas
pelas suas interpretações pelos filmes nos quais foram indicadas: Roberts,
Kidman e Bullock; 2) atrizes cujas atuações representam aquilo que houve de
melhor em suas carreiras e também entre as indicadas: Berry, Theron, Swank; 3)
atrizes favorecidas pelo fato de interpretarem personagens verídicas de grande
importância política (Mirren) ou cultural (Witherspoon). Julia Roberts e Nicole
Kidman, a meu ver, também podem ser incluídas no segundo item, porque suas
interpretações como Erin Brockovich e Virginia Woolf respectivamente
representam também as melhores interpretações de suas carreiras, ainda que suas
vitórias estejam mais associadas à importância dessas atrizes no circuito
crítico e comercial do começo da década – Roberts era a atriz mais bem paga,
denominada a “Queridinha da América”, e Kidman vinha já emplacando vários
filmes de sucesso desde o início da década. Já Hilary Swank, apesar de eu a ter
colocado no item segundo, não penso que “Menina de Ouro” (2004) seja seu melhor
momento, justamente porque a atriz concebeu outra magnífica performance cinco
anos antes, quando viveu Brandon Teena em “Meninos Não Choram” (1999); na
ausência de outro grupo e a fim de enxugar melhor, coube a ela lugar naquele
item.
Faltam duas atrizes na contabilização acima: a francesa
Marion Cotillard e a inglesa Kate Winslet. A vitória da primeira se deu com
alguma surpresa, sobretudo porque os prêmios vinham sendo divididos entre ela e
Julia Christie, atriz inglesa que concorria por “Longe Dela” (2007). Assim,
mesmo que fosse aquele o melhor momento da atriz no cinema até então, não
parecia seguro o seu prêmio, como ainda hoje não são claras as razões pelas
quais ela venceu e não Christie, apesar de inegavelmente Cotillard estar muito
sólida em “Piaf – Um Hino ao Amor” (2007), de Oliver Dahan. Agora, quanto a
Winslet, sua vitória pode ser colocada também no item primeiro, afinal, naquele
mesmo ano, ela havia coestrelado “Foi Apenas um Sonho” (2008) ao lado de
Leonardo DiCaprio, sendo, nesse filme, verdadeiramente atriz principal, já que
em “O Leitor” (2008) sua função é de coadjuvante. Sua vitória em 2009, porém,
requer uma análise mais extensa e minuciosa, pra isso precisamos retornar às cinco
indicações anteriores da atriz, que perdeu suas duas primeiras indicações
injustamente e esteve maravilhosa em “Brilho Eterno de uma Mente sem
Lembranças” (2004) e “Pecados Íntimos” (2006) – assim, a vitória em 2009 me soa
mais como recompensa do que realmente mérito, ainda que sua interpretação como
Hannah Schmidt seja mesmo muito bem trabalhada.
Se a década de 2000 foi bastante sensata com alguma de
suas escolhas – Nicole Kidman e Charlize Theron, por exemplo –, ela conseguiu
nos surpreender com verdadeiros exemplos de mau gosto, como é caso da vitória
de Reese Witherspoon e Helen Mirren, que conseguiram apresentar interpretações apenas satisfatórias. No caso de
Witherspoon, aliás, me surpreende a sua vitória, não apenas porque ela nem
sequer é protagonista da obra pela qual concorreu, mas também concorria com
Felicity Huffman, que detinha uma das melhores interpretações da década, aliás,
de toda a história das indicações do Oscar! Quanto a Mirren, não acho sua
interpretação nem válida de indicação, mas, já que foi indicada, houvessem pelo
menos premiado uma atriz numa interpretação mais pungente e mais intensa, como
Judi Dench, Kate Winslet (ótima oportunidade, aliás, para premiá-la) ou mesmo
Meryl Steep, que nem sequer era lead,
embora tivesse sido nominada como tal.
E fico feliz que as minhas considerações como um todo
tenham sido apontadas no ranking realizado. As minhas favoritas ocuparam no
ranking final justamente a posição em que as coloquei no meu ranking pessoal e
as minhas menos favoritas – Witherspoon, Mirren e Bullock – também ocuparam o
fim da lista no resultado final do nosso ranking. Alteraria, porém, a ordem de
Berry e de Bullock, substituindo a primeira com Helen Mirren e colocando Sandra
à frente da “Rainha”, justamente porque acho que ela tem mais méritos na
relação que se estabelece entre seu desempenho, suas concorrentes e sua
vitória. Quanto a essa década, aliás, penso que Witherspoon e Mirren sejam os
meus únicos verdadeiros desafetos – gosto, pois, de todas as interpretações das
outras atrizes nos filmes pelos quais venceram.
Acho que há algo de notável nessa década e isso também
aparece no nosso ranking final. Penso que a década se marcou pelo registro
ontológico de personagens muito pungentes, independentemente do seu grau de abertura
para o mundo exterior – não é à toa que o TOP 3 tenha sido ocupado por Aileen
Wuornos (Theron), Virginia Woolf (Kidman) e Schmidt (Winslet), justamente as
personagens cujas histórias mais apresentam um discurso sobre a natureza do ser
humano. Se Wuornos é mais extrovertida (no sentido de expansiva, reativa) e
Woolf e Schmidt mais voltadas para si mesmas, isto é, mais interiorizadas, isso
apenas mostra o quanto se pode discutir sobre a natureza humana nas diversas
personalidades existentes – as três trazem consigo todos os sentimentos
passíveis numa pessoa: angústia, medo, orgulho, alegria, desejo. Charlize
entregou-se de tal modo à sua personagem que cada momento seu em cena é também
um momento em que o espectador se sente inebriado pelas emoções da personagens
– gosto particularmente de uma cena, quando Aileen ajeita os cabelos, infla o
corpo, muda sutilmente a expressão, tudo isso a fim de causar em Selby a
impressão de que ela está sendo protegida. Tudo isso está associado à
psicologia da personagem, que é maravilhosamente trabalhada.
A meu ver, nosso ranking registrou eficientemente as
interpretações dessa década – aliás, gosto bastante das atrizes premiadas, até
mesmo de Sandra Bullock, cuja credibilidade é sempre posta à prova, e de Helen
Mirren e Reese Witherspoon, de cujas premiações discordo, mas de cujas
carreiras gosto bastante. E pensar nessa década sempre faz com que eu seja
remetido àquele maravilhoso desabafo de Virginia Woolf na estação de trem e
àqueles momentos iniciais de Aileen tentando se embelezar a fim de conquistar
Selby. Para mim, trata-se de uma década que registrou bons momentos – alguns
esquecíveis, claro, mas outros irrepreensíveis!
por Luís Adriano de Lima
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