O amor e a guerra: a
polarização apresentada por “Shakespeare Apaixonado” e “O Resgate do Soldado
Ryan”
Da esquerda para a direita: David Parfitt, Donna Gigliotti e Harvey Weinstein,
produtores de "Shakespeare Apaixonado"; e Tom Stoppard e Marc Norman,
os roteiristas do filme.
produtores de "Shakespeare Apaixonado"; e Tom Stoppard e Marc Norman,
os roteiristas do filme.
Pensar na 71ª edição do Oscar imediatamente me remete à
repetição. Não apenas porque os títulos principais se dividiam em dois temas
(corte elisabetana e Segunda Guerra Mundial), mas também porque inúmeros
intérpretes aparecem em vários títulos, criando uma sensação de que, às vezes,
embora estejamos assistindo a um filme que nos é inédito, já vimos aquela obra
antes. Para esclarecer um pouco mais, Kathy Bates, Geoffrey Rush, John
Travolta, George Clooney e Joseph Fiennes são atores que estiveram em mais de
uma fita, sendo que os dois primeiros citados receberam indicações nas
categorias de coadjuvantes.
Além disso, as tantas biografias que surgem entre os
nominados: “Além da Linha Vermelha” (1998), autobiografia do escritor James
Jones, em cujo romance o filme se baseou; “Elizabeth” (1998), narrando a
ascensão da personagem-título; “Deuses e Monstros” (1998), que apresenta a vida
do diretor hollywoodiano James Whale; “Hilary e Jackie” (1998), contando a
história conflituosa das irmãs musicistas du Pré; “A Qualquer Preço” (1998),
sobre a tentativa de Jan Schlichtmann, advogado, de mover uma ação contra uma
empresa responsável pela contaminação da água de uma região, o que
eventualmente levou à morte de várias pessoas. Ainda, não se pode esquecer a
“biografia” de Bill Clinton, apresentada no filme “Segredos do Poder” (1998).
Apesar da sensação de “mais do mesmo”, não se pode negar a
existência de duas grandes obras – “Shakespeare Apaixonado” e “O Resgate do
Soldado Ryan” (1998) – e de alguns outros pequenos
grandes filmes, como é o caso de “Um Plano Simples” (1998), muito funcional
na sua narrativa, “Central do Brasil” (1998), que não apenas alçou o Brasil a uma
notabilidade essencial para o próprio público brasileiro, como apresenta uma
das maiores intérpretes do cinema nacional naquela que é potencialmente a sua
melhor interpretação, e “O Show de Truman” (1998), cujo debate sociológico é,
provavelmente, um dos melhores que o cinema já proporcionou.
Mais uma vez indicada por um filme de Madden, Judi Dench ganhou a estatueta. |
O vencedor da noite, título do inglês John Madden, provoca
ainda hoje inúmeros problemas de aceitação por parte dos cinéfilos – como,
afinal, essa obra sagrou-se a melhor, em detrimento da fita de Spielberg?
Embora eu não concorde com o resultado da Academia, não vejo deméritos em
“Shakespeare Apaixonado”, que considero uma obra bastante proveitosa, de
singeleza exemplar e de roteiro que prova ser perfeitamente possível trabalhar
uma história simples e, ainda assim, torná-la apaixonante. Talvez isso não seja
visível numa primeira conferida – não é à toa que eu precisei rever o filme umas
duas ou três vezes até enxergar tudo que há de belo e eficiente nele, desde a
direção de arte e som ao figurino, maquiagem e atuações, das quais se destaca,
com notável evidência, a de Judi Dench, que reinou soberana entre as indicadas
e merecidamente conquistou sua estatueta.
“O Resgate do Soldado Ryan”, no entanto, traz consigo toda
a realidade e crueza de um momento trágico, apresentando um roteiro que não só
se ocupa em narrar uma jornada, mas igualmente apresenta uma crítica feroz a um
país que não se sensibiliza ao entrar numa guerra e perder muitas vidas,
todavia, contraditoriamente, se condiciona a resgatar um único soldado. Uma
crítica maravilhosa a uma política alicerçada em hipocrisia. A somar, uma
linearidade eficaz que impede o espectador de se estafar, apesar de o filme se
estender por quase três horas. Decerto, o meu favorito dessa edição, o filme
que deveria angariar o maior número de votos e sagrar-se o melhor da noite de
21 de março de 1999, data da entrega dos prêmios. Spielberg, pelo menos, foi
compensado com a estatueta de Melhor Diretor, a segunda de carreira (a primeira
fora conquistada em 1994, pela direção de “A Lista de Schindler”, do ano
anterior).
O terrível retrato da guerra em "O Resgate do Soldado Ryan".
Trata-se de uma cerimônia bastante estranha, sobretudo
pela abertura concedida aos filmes estrangeiros, sendo dois deles de destaque:
“Central do Brasil”, brasileiro, em uma categoria de atuação, e “A Vida É Bela”
(1997), italiano, que inclusive conquistou espaço na categoria principal, o
que, para um filme de língua não-inglesa, havia acontecido apenas uma vez, 29 anos antes,
quando “Z” (1969), de Costa-Gavras, realizou o feito. Tendo havido tal espaço
para filmes de língua estrangeira, me surpreende tanta bajulação para a obra de
Roberto Benigni, que se trata de uma fita bastante insatisfatória. Consideraram o
italiano o Melhor Ator da noite, ainda que fosse o único de interpretação
sofrível dentre os indicados, mas ignoraram Fernanda Montenegro, que apresentou
o desempenho mais completo dentre as atrizes. Paradoxos da Academia, evidente,
provavelmente um ato sem explicação plausível.
“Além da Linha Vermelha” é um exercício estafante de
monotonia. “Elizabeth”, produção inglesa, alavancou a carreira de Cate
Blanchett, que fez por merecer sua nominação. Enxergo, porém, a edição como uma
polarização entre Shakespeare in Love
e Saving Private Ryan, dois títulos
que merecem atenção pela sua qualidade artística e técnica e que imperam em
relação aos outros nominados. Mostram-se como oposição de temas também: o
negativo da guerra em oposição ao positivo do amor; o cruel do front de batalha
em oposição à beleza da paixão arrebatadora; um cenário tipicamente masculino
em oposição a um cenário no qual há luta da mulher para se inserir nele; a
direção crua de Spielberg em oposição ao roteiro enfeitado de Marc Norman e Tom
Stoppard. Entre a brutalidade e a redenção vindas de dois filmes grandiosos e
plenamente capazes de serem merecedores do prêmio máximo, os votantes
sucumbiram à delicadeza da relação impossível de Shakespeare e Viola de
Lesseps, num enredo que eficientemente mistura realidade e ficção, resultando
num romance verdadeiramente cinematográfico, a que se assiste com prazer. Ainda
que meu favorito seja outro, a força da obra de John Madden merece
reconhecimento, não os rechaços costumeiros. Contudo, mesmo que a obra do
diretor inglês tenha recebido o Oscar de Melhor Filme – o último até hoje,
aliás, do gênero comédia/romance a conquistar estatueta máxima –, o melhor da
temporada, a meu ver, era “O Resgate do Soldado Ryan”, cuja pungência nos faz
admirar a cada instante o drama dos soldados cujas vidas parecem estar sempre
no seu último momento. O último momento, verdadeiramente, deveria ter sido o
Oscar.
por Luís Adriano de Lima
3 comentários:
O Artista levou Melhor Filme esse ano. Será que podemos dizer que essa foi a primeira comédia romântica a vencer o prêmio desde Shakespeare Apaixonado?
Não vejo "O Artista" como uma comédia, muito menos como um romance. A meu ver, é um drama com marcas cômicas e românticas, mas, ainda assim, um drama.
Luís, como sempre, você impecável em seu texto. Odeio a cerimônia do Oscar 1999. É, provavelmente, a minha menos favorita, das que eu assisti. Não tenho problema com a vitória de "Shakespeare Apaixonado", pois acho que o grande filme desse ano nem favorito era pra vencer, infelizmente: "Além da Linha Vermelha". Além disso, não me conformo com as vitórias de Roberto Benigni aqui... Não me conformo MESMO!!!
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